Beleza e maestria no 1º Festival da Cerâmica de Maragogipinho

O festival é uma iniciativa do Governo da Bahia por meio do Programa Artesanato

Abordado pela reportagem no meio da rua, quando voltava do almoço para o trabalho, o artesão Denismar Peixoto Costa aceita mostrar as instalações da Olaria de Miro, uma das principais entre as 180 olarias de Maragogipinho, distrito de Aratuípe, onde produz artigos de cerâmica com seu irmão mais velho, que dá nome ao negócio.

Quando abriu a porta, camuflada por palha, assim como as paredes do imóvel, descortinou-se um imenso e austero galpão. O forno a lenha expelia uma fumaça fina, que não chegava a incomodar, e havia uma infinidade de peças de argila pelo chão, aguardando a vez de serem expostas à brasa, um processo que dura de cinco a sete horas.

Pendurada na parede, uma foto com mais de uma dezena de integrantes da família Peixoto Costa lembra que a oficina foi criada pelo pai deles, Betinho, como Olaria São Jorge. Miro, irmão de Denismar, estava sentado em uma poltrona ao longe, observando um jogo de vôlei na televisão, sem volume. Ele não gosta de dar entrevistas.

Com a voz de Ney Matogrosso ecoando baixinho nas caixas de som espalhadas pelo galpão, cantando À Distância, de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, Denismar conta a história do negócio da família e a sua rotina de trabalho, que normalmente começa às 5h e segue até às 18h, com intervalos para as refeições. “A arte é um vício. Quanto mais você faz, mais dá vontade de fazer”, diz ele, que produz garrafas de cerâmica de um metro para decoração e alguns artigos utilitários, como um comedouro para pássaros livres que ele desenvolveu.

“Uma amiga dona de uma pousada me mostrou um comedouro que tinha. Com todo o respeito a quem fez, era muito feio e eu pensei em fazer um”, conta Denismar. Os objetos maiores, de dois metros em diante, ficam a cargo do irmão mais velho. “Eu já tentei fazer, mas não consegui”, afirma.

A produção da família de Denismar é estocada em outro galpão, em frente à olaria. Entre os objetos, alguns avisos de que fotografias só com autorização. Ele conta que já aconteceu de uma grande empresa nacional usar as imagens de seu artesanato para promover seus produtos sem pagar pelo uso.

O trabalho da família Peixoto Costa é um dos que deram a Maragogipinho a reputação de maior polo de cerâmica na América Latina. São três séculos da tradição de transformar argila, com calor e tintas, em utensílios e objetos de arte.

A partir de amanhã até o dia 19, os artesãos e mestres locais estarão expondo na primeira edição do Festival da Cerâmica de Maragogipinho, uma versão ampliada da feira de artesanato que aconteceu por duas vezes e que terá também pratos típicos da região e shows de Lenine, Jau, Cortejo Afro e Roberto Mendes, entre outros.

“O contexto muda porque, antigamente, era só artesanato. Agora, há um leque de opções culturais que o município ganha. O festival vem para agregar e elevar o nome de Aratuípe e, principalmente, de Maragogipinho”, afirma o secretário municipal de cultura Jensen Duarte.

Sobre a parte gastronômica, o secretário afirma que está sendo feito o cadastramento de cozinheiros e cozinheiras de Aratuípe e de municípios vizinhos, como Jaguaripe, Nazaré das Farinhas e Muniz Ferreira. “Vai haver uma variedade de gastronomia nesse festival”, afirma o secretário.

Sobre a produção de cerâmica em si, o secretário declara que em Maragogipinho há por volta de 180 olarias, considerando cerca de 120 galpões espalhados pelo município, além de umas 60 unidades residenciais “Há 10 anos, começou essa tendência de fazer a olaria no fundo de quintal”, explica.

Uma dessas unidades residenciais é a de Rosene Santos, autoproclamada única mulher a trabalhar com o torno em Maragogipinho. Rosene não vive exclusivamente da cerâmica, tem um mercadinho e presta serviços em outras especialidades, como a gessaria.

Mas faz questão de dedicar tempo à atividade que começou a praticar quando tinha cinco anos de idade, observando vizinhos. “Eu digo que é dom de Deus mesmo, porque não fui incentivada por ninguém”, declara Rosene, que remando contra a maré em uma atividade dominada por homens, se criou mexendo no barro, meio de brincadeira, até que um dia teve a curiosidade de ver como funcionava esse tal de torno. E nunca mais o deixou.

“Às vezes, a necessidade te obriga a fazer coisas que você nem imagina. Eu tenho várias profissões, mas essa é uma das que eu mais amo”, afirma a ceramista, que não vai participar do festival como expositora. Diz que pretende ir lá só para se divertir.

Apesar de ter um terreno onde se encontra argila com facilidade, Rosene encomenda o barro da sede, em Aratuípe, por questão de segurança. O terreno é movediço, traiçoeiro. “É perigoso e muito puxado. Ninguém tira barro aqui, vem de Aratuípe”, declara.

A imagem de uma santa feita pelo mestre Rosalvo e seu filho Rosalvinho pode custar R$ 3,5mil, podendo ser revendida por muito mais nos grandes centros urbanos. Rosalvinho, 23 anos, é um dos talentos da nova geração e começou a mexer com barro ainda criança, mas decidiu mesmo seguir os passos do pai – conhecido em todo o país por sua arte sacra – ao acompanhá-lo em uma viagem a São Paulo há cinco anos e ver como ele é reverenciado durante a exposição SP Arte – Rotas Brasileiras. “Eu vi como as pessoas tratavam ele com solenidade, a importância que tinha o trabalho dele lá”, lembra o jovem.

Antes disso, Rosalvinho, que é evangélico e toca trompete e teclado, pensava em ser músico. Até hoje, ele toca nos cultos da Igreja Batista Casa de Oração. Mas sua fé não o impede de produzir imagens de santos católicos ou de orixás.

A estátua de Nossa Senhora que ele trouxe de carro para Salvador na última terça-feira, assim que acabou a entrevista, levou 20 dias para ficar pronta, sendo produzida em paralelo a outros trabalhos. “Faço seis ou sete imagens por mês. Depende muito do tempo também, do sol”, explica.

Seu pai, Rosalvo Santana, esteve em São Paulo novamente entre 30 de agosto e 3 de setembro deste ano para participar da exposição Arte dos Mestres, promovida há 25 anos pela Rede Nacional de Artesanato Cultural Brasileiro, Rede Artesol.

Na infância, Rosalvo, 58 anos, acompanhava os pais à olaria e fazia com argila figuras populares, como cavalinhos e homens com chapéus sertanejos. Mas aos 16 anos foi aconselhado por amigos a migrar para a arte sacra. “O pessoal me dizia: rapaz, você tem uma modelagem tão adiantada, por que não faz santos de barro?”, conta o mestre.

Sem referência local para estátuas religiosas, Rosalvo foi autodidata, aprendendo com observação, tentativa e erro. “Eu ia para a igreja pesquisar as imagens para tentar fazer igual. Depois, eu levava para minha mãe ver. Eu ficava feliz quando ela dizia que gostou”, afirma Rosalvo, que é católico. O artista percebeu que as imagens de santos tinham um estilo parecido e decidiu inovar, misturando barroco e rococó.

A carreira deslanchou quando ele decidiu viajar a Salvador para participar de um concurso de presépio promovido pelo Ipac em 1998, mesmo com a desconfiança de pessoas próximas, que diziam haver muita gente na capital fazendo isso. “Eu ganhei o primeiro prêmio”, conta o artesão.

Designer especialista em artesanato e consultor da Fábrica Cultural para o Artesanato da Bahia, Rodrigo Lyra não considera que exista tal coisa como a contribuição do design para a cerâmica de Maragogipinho. Mas, bem ao contrário, a forma com que a cerâmica contribui para o design brasileiro. “Temos uma sucessão de contribuições. São mais de 300 anos de uma tradição que vem agregando conhecimento, adequando-se às tecnologias atuais”, afirma Lyra.

Forma específica

O consultor considera que além de preservar as técnicas de tratamento da cerâmica desenvolvidos por africanos, europeus e pela população autóctone, os moradores de Maragogipinho criaram uma forma específica de lidar com a argila.

“Na sua origem, havia a necessidade de ter as telhas, os tijolos. E a isso se somaram as necessidades das religiões de matriz africana. Não existe axé sem o barro, sem os elementos naturais dos quais Maragogipinho é um grande fornecedor, não só para a Bahia, mas para o Brasil”, assinala Lyra.

Não há como ficar indiferente à profusão de objetos finamente talhados, que podem ser adquiridos em visitas às olarias de lá, mas também na Feira de São Joaquim, em Salvador, ou por encomenda.

O coordenador de Fomento ao Artesanato da Secretaria de Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Governo do Estado da Bahia ( Setre), Weslen Moreira define a cerâmica de Maragogipinho como uma “pedra a ser bastante lapidada”, em função do potencial dessa atividade econômica.

“Pouca gente sabe, mas Maragogipinho é o maior polo cerâmico da América Latina”, declara Moreira. O título foi outorgado em 2004 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

Em Maragogipinho, cada núcleo familiar produz do seu jeito, com rotinas de trabalho que misturam técnicas ancestrais e personalidade própria. Especialista em objetos de cozinha, Antônio Rafael, o Tutuna, 80 anos, completados dia 24 de outubro, não é de muita conversa.

Observado à distância pelo neto Denisson Santana, de 21 anos, o experiente artesão trabalha em silêncio na produção de tachos para moquecas, panelas de feijoada e outros artigos. Fala mansa, respostas curtas, conta que os compradores normalmente o procuram na olaria. “Eu vendo por aqui mesmo, de vez em quando uma feira, em Cachoeira e Nazaré”.

As peças são ornadas pelo caprichoso desenho de sua mulher, Zelita, uma referência local em pintura em cerâmica, que nos últimos anos se dedica apenas à produção familiar. “Às vezes, eu passo as peças e ela pinta. Trabalho de casa mesmo”, conta Tutuna.

Pouco antes do fim da entrevista, o artesão se anima a dar uma pequena explicação sobre a diferença de trabalhar com argila convencional, com tabatinga, o barro branco, e o tauá, que é a argila tingida por óxido de ferro. “O tauá quando vai ao forno fica com aquela cor (aponta), vermelha. Mas tem gente que pinta de Suvinil”, explica.

O neto, que o ajuda a amassar barro e a pintar não diz se pretende seguir a tradição familiar. “Ainda estou vendo”, desconversa, sorrindo.

O Festival da Cerâmica de Maragogipinho é uma iniciativa do Governo da Bahia por meio do Programa Artesanato da Bahia da Setre em parceria com a Prefeitura de Aratuípe e Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

Fonte: A Tarde

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