Multinacionais investem em prêmios e visitas a fazendas para evitar o ‘fim do chocolate’
Sul do estado se mostra um promissor laboratório para produção sustentável, já que mantém modo de cultivo em que floresta e cacau convivem harmoniosamente
Já pensou um mundo sem chocolate? O ‘chocalipse’ estava previsto para acontecer justo nesta década pandêmica. Imagine tudo que estamos passando sem um bolo chocolatudo, um brigadeiro ou mesmo aqueles bombons da infância… Desculpe os amantes da pasta de amendoim, mas cacau é fundamental – e desenhar uma cadeia mais sustentável tem sido missão urgente. De agricultores às indústrias processadoras e chocolateiras multinacionais, governos e universidades pelo mundo, o empenho é por pesquisar, investir e premiar quem aposta em evitar o colapso nas plantações e garantir que as futuras gerações possam apreciar o xocoatl.
A ‘água amarga’ dos astecas ganha leite e açúcar para virar o produto que movimenta mais de 25 bilhões de dólares no mundo. “70% da produção de cacau vem da África. Caso as doenças vassoura de bruxa e moniliase (fungo) cheguem por lá, vai diminuir a oferta de cacau no mundo. Razão pela qual as chocolateiras estão investindo em pesquisa e desenvolvimento no continente americano e asiático para aumentar a oferta de cacau vindo destes dois continentes”, analisa o professor titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), Dario Ahnert. Além disso, sociedades civis denunciaram trabalho infantil e outras mazelas no continente que concentra os maiores produtores da amêndoa.
Esse movimento se intensifica a partir de 2012, quando um consórcio internacional de fabricantes reconhece problemas nas áreas social, econômica e ambiental em regiões produtoras. Para evitar o colapso dessa cadeia complexa e bilionária, começou a ser desenhada uma forma de incentivar a produção sustentável. O Sul da Bahia se mostrou um promissor laboratório já que tradicionalmente mantém um modo de cultivo em que floresta e cacau convivem harmoniosamente – e com gente disposta a encarar o desafio.
Desde 2010, produtores como Claudia Sá, à frente do grupo Cantagalo com seus mil hectares de cacau espalhados em 14 fazendas, não abrem mão das parcerias. “Todas as etapas têm a mesma importância na colheita do cacau. É um trabalho de equipe”, conta Claudia, administradora do grupo, finalista do Concurso Nacional de Qualidade de Cacau Especial do Brasil deste ano, que seleciona as melhores amêndoas produzidas no país – ela venceu a disputa em 2021.
Na Fazenda Boa Sentença, Claudia mostra, orgulhosa, o trabalho, considerado modelo na região. Ela é parceira da Nestlé. Sim, Claudia tem corrido em duas vertentes: aprimorado as práticas agrícolas e buscado melhorar a qualidade da amêndoa, fornecendo para a grande indústria e também para a produção do cacau fino (de loja de grife).
Das 14 fazendas do grupo, 13 são participantes do Nestlé Cocoa Plan – programa global de sustentabilidade da marca suíça para a cadeia do cacau. Desde 2010, o modelo, com foco em uma produção sustentável, é executado no Brasil pela gigante suíça. São fornecidos desde treinamentos aos agricultores sobre práticas agrícolas, até orientações sobre cumprimento de leis e normas ambientais, trabalhistas e de direitos humanos.
“Cocoa Plan é um programa de desenvolvimento de produtores de cacau, no qual levamos conhecimento técnico e conhecimento com relação à legislação ambiental e trabalhista, com todas as normas exigidas pelo mercado para que o produtor possa nos fornecer cacau sustentável”, explica Igor Mota, gerente agrícola da Nestlé.
A empresa espera chegar a 2025 com 100% de cacau sustentável em seus produtos. Pelo menos 200 mil toneladas do cacau usado pela marca suíça no mundo vêm do programa, que permite acompanhar o trajeto da amêndoa – para garantir que a semente não venha de área de desmatamento, que o agricultor tenha condições dignas de trabalho e que a fazenda esteja em dia com as leis ambientais e trabalhistas.
“Todos os meses é verificado por satélite o perímetro das propriedades e, se há alguma área com indício de desmatamento, vamos apurar. Assim é possível garantir que nosso cacau não vem de área desmatada”, exemplifica Claudia. O CORREIO visitou a Fazenda Boa Sentença em julho.
Até o final do primeiro semestre deste ano, a multinacional suíça contava com 1.700 produtores certificados – 1.300 deles na Bahia e o restante distribuído entre Pará (31%), Espírito Santo (7%) e São Paulo (1%). A meta é fechar este ano com 3.500 produtores e 22 mil até 2025. Atualmente, 40% do que é utilizado pela Nestlé observa os critérios definidos pelo Cocoa Plan. A empresa hoje é responsável por 42% do mercado de chocolate no país.
As propriedades recebem visitas técnicas e as que seguem os critérios são certificadas no modelo – recebendo uma premiação pelo cacau sustentável. O valor varia de US$35 a US$100 por tonelada. “A gente como produtor espera melhorar o valor do prêmio”, brincou o administrador de uma fazenda parceira. Para a empresa, o prêmio é parte de um trabalho de convencimento, não o fim. “Encorajamos e orientamos a busca por financiamento, por exemplo. Depois da certificação, a visita é, no mínimo, anual. Não exigimos exclusividade na venda: o produtor pode vender a produção para qualquer um e não temos como saber”, reforça Igor.
O selo Cocoa Plan está presente na embalagem do KitKat – a primeira marca de chocolates a utilizar 100% de cacau com certificado de sustentabilidade e rastreável. O cacau sustentável está presente também em produtos como Alpino, Prestígio, Talento, o cacau em pó (‘2 frades’) e Batom. A marca suíça anuncia ter investido cerca de 300 milhões de dólares na sustentabilidade do cacau. A empresa elaborou um manual de nutrição e adubação do cacaueiro a partir de um estudo que durou 4 anos, de 2016 a 2021.
Como funciona
A Nestlé não compra direto dos produtores – a venda é intermediada por três moageiras que fornecem a amêndoa para a multinacional. São elas: Barry Callebaut, Cargill e OFI (Olam Food Ingredients). Elas compram as amêndoas na mão dos produtores, processam o produto e revendem para as grandes chocolateiras, entre elas a Nestlé.
De acordo com Bruno Cheble Ferreira, gerente de Compras de Cacau na Cargill do Brasil, 70% de todos os produtores que participam da cadeia direta estão mapeados – o percentual era de 64% no ano passado. “Se somarmos os produtores beneficiados, chegamos a 296 pequenos e médios produtores”.
A Cargill, multinacional americana, é uma das implementadoras do Nestlé Cocoa Plan nos estados da Bahia, Pará e Rondônia. “Estamos trabalhando cada vez mais próximos e estimulando as cooperativas. Em todo o setor, o significado de sustentabilidade no cacau e no chocolate está evoluindo. Consumidores, produtores, empresas, ONGs e governos de países produtores e consumidores estão exigindo mudanças”, conta Bruno.
Mesmo com todo esforço, ainda existe risco do chocolate acabar? Sim. Há uma corrente que afirma que as mudanças climáticas afetarão a produção de cacau no mundo. O cacaueiro é uma planta exigente – precisa de uma calibragem certa entre temperatura uniforme, umidade alta e chuva farta. É certo que ele não abre mão de crescer em florestas tropicais – embora existam sistemas de produção em sol pleno, mas com o custo de produção maior, devido à exigência de alta demanda de insumos.
Para a diretora-executiva da Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau (AIPC), Anna Paula Losi, todos os elos da cadeia da cacauicultura estão engajados com critérios de sustentabilidade e o Brasil tem um diferencial: temos todos os elos aqui, desde as indústrias moageiras, produção, indústria chocolateira e um parque consumidor grande e com potencial de crescimento.
“A preocupação das indústrias vêm para trabalhar não só o mercado interno, mas também para preparar o país para demandas internacionais. Um dos principais exemplos fruto dessa preocupação está a coalizão CocoaAction Brasil, que é patrocinada pela indústria moageira e chocolateira e que na sua governança conta com todos os elos da cadeia, mais representantes do governo federal e estaduais e entidades da sociedade civil. A coalizão fez uma construção coletiva e lançou o Currículo de Sustentabilidade do Cacau e as Diretrizes para a Promoção do Trabalho Decente na Cadeia”
Panorama
Em geral, a cacauicultura no mundo sempre foi expansionista, como explica o professor Ahnert: a floresta é derrubada e queimada e então se plantam as mudas. Na primeira década, há uma produtividade elevada, sem necessidade de fertilizante, o que barateia o processo. Mas depois há uma queda no rendimento dos pés.
Claudia é uma grande produtora e sua realidade é diferente da maioria da região. Pesquisa feita pelo Instituto Floresta Viva no Sul da Bahia mostrou que apenas 37% dos entrevistados solicitaram crédito em algum momento da vida. Além disso, apenas 5% receberam algum tipo de assistência técnica regularmente e 20%, ocasionalmente nos últimos dez anos.
ALERTA NO PAÍS – O Ministério da Agricultura publicou na terça-feira (22) portaria em que declara os municípios de Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima, Rodrigues Alves, Marechal Thaumaturgo e Porto Walter no estado do Acre e todo o estado do Amazonas, como área sob quarentena para a praga Moniliophthora roreri, causadora da doença conhecida como Monilíase do Cacaueiro. A declaração implica na proibição do trânsito de materiais vegetais (frutos, plantas) hospedeiros da praga (espécies do gênero Theobroma e Herrania) para outros estados.
Fonte: Correio da Bahia